Acho que uma das maiores virtudes do ser humano é o dom da comunicação.
E também, a sua maior desgraça.
Dou muito valor a quem consegue se comunicar...
Não importa como. Não importa por qual maneira de linguagem.
Não importa.
O importante é demonstrar seus sentimentos. Tanto os mais claros, como aqueles bem escondidos. Reprimidos.
Lembro que quando era pequeno, morei um tempo em Minas Gerais.
Interior mesmo. E meu pai tinha algumas pessoas que trabalhavam pra nós. Humildes mesmo. Não eram agraciados com energia elétrica, saneamento básico, nada. Nunca estiveram fora daquela cidade e o agente influenciador de opiniões, para eles, eram duas pessoas: o pároco local, que mandava ideologicamente e meu pai, que representava o poder. Para eles.
Eu era menino. Deveria ter uns seis anos. Sete, no máximo. Mas lembro-me com perfeição. Aguardava ansiosamente as seis horas da tarde, todos os dias. Essa era a hora em que terminavam o serviço e, enquanto se preparavam para ir embora, contavam "causos" sensacionais, regados a muito bolo e café com leite preparados pela minha mãe.
Como eu viajava naquelas palavras. Era a história do Tião do Mato que, sozinho, encarou uma onça que habitava solitariamente o alto das montanhas. Ou do João de dona Zefa, que num jogo de futebol da cidade, foi atingido por um raio e marcou quatro gols em seguida. Como me esquecer do Zé Afonso, que conseguia vir correndo e dar uma cabeçada em um boi (nunca vi, mas ele me dizia que fazia isso todos os dias ao acordar). Velho Vicente Aleixo, que contava todos os capítulos das radionovelas que ouvia quando era menino.
E quando chegava a sexta-feira?
Ao término da "labuta", havia o tradicional futebol no terreiro...
Atravessava a noite. Uma algazarra só. Todos jogavam. Desde um menino pentelho, ranhento e extasiado como eu, até mesmo um senhor todo encurvado, banguela, mais de 80 anos, como Tonico de Dorinha.
E a festa era uma só. Todos gritavam, corriam. Um sanfoneiro alegrava a todos a noite inteira.
As mulheres vinham chegando ao cair da noite e, assim que terminava a ultima partida, o campo se transformava em uma grande pista de dança.
Uma vez, em uma sexta-feira arquivada no tempo, eu estava jogando em um dos times. Não me lembro ao certo, mas acho que era jogo importante. Quase meia-noite. Eu ali, correndo pra lá e pra cá. Hoje, vejo que estava apenas fazendo número no time. Mas estava radiante.
E no final, penalti para o meu time. Finalzinho de jogo. Um jogo tenso. Pra minha surpresa, o Zé Geraldo pegou a bola e veio em minha direção... "Toma toquinho (nossa, nunca mais ninguém me chamou de toquinho), bate que a gente vai ganhar!!"
"Eu vou errar. Não sou como você." disse.
"Não. Você não é como eu. Você é melhor do que eu."
"Não sou não. Eu queria é ser como você"
"Você, um dia, será melhor que eu. Sei disso. Mas agora pega a bola. Conta seis passos, bate com a parte interna do pé. A bola vai fazer uma curva pra fora, tirando o goleiro da jogada."
Pura física.
Momento de gênio para alguém que nunca estudou na vida.
Mas sabe, como um "doutor", se comunicar.
Usar as palavras.
O corpo.
Sabe sorrir.
PS: Estive em Minas há pouco tempo. Fazia muito tempo que não ia lá. Revi muita gente. Outras, só consigo rever em meu coração, já que estão contando causos em algum lugar do céu.
E revi também o Zé Geraldo. Pais de três filhas lindas, os primeiros cabelos brancos aparecendo... Mesmo sorriso. Mesma gargalhada. Mesmas histórias...
É Zé... Nunca serei melhor que você.
PS2: Ah, foi gol. Acho hoje que o goleiro deixou. Mas não importava isso na hora. Comemorei como final de Copa do Mundo...